terça-feira, 19 de maio de 2009


O “estudo comparado da cultura”, ao ampliar áreas do saber a outras, tornando possível o derrube de barreiras rígidas entre as mesmas, não só alarga a perspectiva tradicionalmente canónica das humanidades, como coloca em causa os cânones. Ao falar de áreas diversas estanques, incluindo “a nação, a raça, o sexo”, é significativo encontrar a palavra cultura, como (ainda) definidora de uma amálgama de linguagens outras que não a linguagem escrita, ou falada.
De facto, nas sociedades contemporâneas, onde cada um pode e é incentivado a desenvolver a sua própria linguagem, torna-se imperioso fazer a reavaliação do significado do cânone, impossível que parece ser a travagem que resulta da globalização e dos inevitáveis cruzamentos de culturas entre raças, entre homens e mulheres e que pode resultar numa confusão generalizada, quer a nível de conceitos, quer a nível das próprias linguagens, isto é, do hibridismo e da subjectividade culturais. A preocupação crescente com a (des)estruturação de todos os discursos, deixada pelo pós-modernismo, torna inevitável e necessária, deixando, por esta mesma razão, um espaço em aberto para uma questão fundamental e que se prende com a relação directa entre cânone e identidade cultural. Sendo esta recensão centrada no cânone dos Estudos Anglo-Americanos revela-se essencial falar, igualmente de tradição, por ela estar associada à identidade cultural inglesa e que pressupõe uma hierarquia de valores, dos quais se destaca a importância da própria língua como bem-cultural.
Não sendo pacífico, a matéria remete para a “consciência crítica” de quem se ocupa destas questões e que, sendo indissociável da tradição, é igualmente, ou sobretudo, do foro da constituição da própria nação a que a língua dá identidade. Fala-se pois da institucionalização da própria cultura, assim como da sua natureza política e não apenas da perspectiva estética pela qual toda a linguagem procura meios de constante mudança, ou transformação, por estas imbuída de uma função ligada ao social, ou seja, ligada às estruturas de toda e qualquer sociedade organizada. É de particular interesse verificar, como relativamente à questionação dos cânones, as reacções mais conservadoras se assemelham, insurgindo-se como o fez René Wellek contra esse “ataque total à literatura”, ou escrevendo “como salvar a literatura”, precisamente quando o risco dos textos críticos parecia ameaçar, por exemplo, as artes plásticas. Na verdade nunca, como nos anos 70 e 80, se viu tanto interesse despertado nas pessoas em geral pelas questões literárias e artísticas. A permeabilidade que os escritores e artistas, ou o próprio produto cultural, começam a demonstrar, institucionaliza, paradoxalmente, o saber hermético, de tal modo que as formas de discurso dos próprios criadores começa a ser contaminado pelos “tiques” intelectuais, dando novo brilho, ou emprestando uma nova aura às suas obras, pela inexistência real do transcendente. Se esta ausência pode ser relacionada com o silêncio dos estudiosos, ou seja dos professores de literatura nos Estados Unidos, talvez haja nesta confortável posição o reflexo da ausência de esperança presente nas obras desta época. Significativo é, ao tratar-se de uma sociedade multi-cultural, como é a dos Estados Unidos, que a cadeira de Civilização Ocidental tenha sido substituída na Universidade de Stanford, em 1988, por “Cultures, Ideas and Values”.
As humanidades devem estar atentas, atentas sobremaneira às mudanças que alteram, através das estruturas social, política e económica, os cânones e transformam toda uma concepção intelectual da própria vida. Devem estar, igualmente, atentas à forma como se alheiam da natureza específica das linguagens não escritas, ou faladas. É que por muito que as coincidências sejam paralelas, o certo é que a forma de estar e de ver o mundo, pelos criadores, é muito distante do mundo académico, fechado ao mundo e às outras realidades.

Isabel Monteverde

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