terça-feira, 4 de agosto de 2009

ALUSÕES EM "THE WASTE LAND"

>.< T. S. ELIOT:

(Des)centramentos em “The Waste Land”:
A Realidade Dinâmica no Modernismo

Introdução

Há um quadro intitulado “If Not, Not” de Kitaj, pintor americanoradicado em Londres, a quem se deve a famosa expressão The School of London, referindo-se a um grupo de pintores solitários e brilhantes que surgem após a Segunda Grande Guerra. Alguns deles refugiados como é o caso de Frank Auerbach ou Lucien Freud, reune entre eles o mítico irlandês Francis Bacon, que tal como Kitaj foi igualmente inspirado pelo poema “The Waste Land”. Na mesma medida em que foram
influenciados pelo cubismo ou pelo surrealismo, a importância da Literatura nas suas obras revela o domínio de um meio literário londrino o qual, na ausência de outro mais abrangente, acabou sendo referência cultural para as outras áreas de expressão. A importância
do Cubismo e a pintura de Cézanne são determinantes para o caminho traçado por Kitaj, mas também Eliot, Pound ou Joyce. Em If Not, Not, a alusão a Conrad é representada pela presença da água que leva tudo na enxurrada. Quando porém, o artista fala do fogo, aludindo à
antecâmara do inferno, é aos crematórios de Auschwitz que ele se refere:

Two main strands come together in the picture. One is a certain allegiance to Eliot’s Waste Land and its (largely unexplained) family of loose assemblage. Eliot used, in his turn, Conrad’s Heart of Darkness, and the dying figures among the trees to the right of my canvas make similar use
of Conrad’s bodies strewn along the riverbank. Eliot said of his poem, ‘To me it was only the relief of a personal and wholly insignificant grouse against life; it is just a piece of rhythmical grumbling.’ So is my picture... but the grouse here has to do with what Winston Churchill called ‘the greatest and horrible crime ever committed in the whole history of the world’ ... the murder of the European Jews. (...). This theme 2 coincides with that view of The Waste Land as an antechamber to hell. (...). The general look of the picture was inspired by my first look at Giorgione’s Tempesta on a visit to Venice, of which the little pool at the heart of my canvas is a reminder. However , water, which often symbolizes renewed life, is here stagnant in the shadow of a horror... also not unlike Eliot’s treatment of water. (...). (Livingstone 1999: 91)

Independentemente de a sua posição ideológica ser diametralmente oposta à de Eliot, a apropriação que faz do Inferno de Dante vem completar o cenário de horror vivido entre as duas Grandes Guerras.
O poema suscita imagens plásticas muito sugestivas, aproximandose da técnica de montagem de situações diversas para exteriorizar uma emoção particular, a mesma utilizada cinematograficamente, ou na pintura: “Eliot, like Cézanne, invites the reader to recompose his
separate images and vignettes (...) yet the very fragmentation of cities is enacted in the forms on Modernism.” (Schwarz 1997: 114). Por outro lado, as imagens da água e do fogo provocam, por sua vez, outras associadas a movimentos circulares. Randy Malamud (Malamud 2001: 100-113) enfatiza-as, estabelecendo ligacões à música, a Shakespeare e Dante. O problema da destruição no poema deve-se, segundo Malamud, não só à inconciliável união do fogo com a água, mas à minimização da importância da força da água, por parte do ser humano. Vendo na música uma forma de evasão ele caminha para o estado de alienação. Em certa medida, Eliot alude às linguagens rebuscadas e à sua preferência por formas mais simples, tal como os ritmos naturais da terra, símbolos que traduzem a morte e renascimento. Os movimentos circulares, suscitados pela água e pelo fogo, como formas presentes no Orfismo de Robert Delaunay e no Tubismo de Fernand Léger, que preocupado pela função social da arte, encontra nos prérenascentistas, sobretudo em Cimabue, ou seja na arte dos primitivos, o sentido do concreto e a verdade da forma, traduzem a realidade dinâmica que reflecte a intensidade cultural da época, especialmente a da cultura afro-americana, através do jazz, cuja estrutura complexa 3 percorre igualmente “The Waste Land”. Assim como entre Léger e Eliot se estabelece uma ligação comum ao anti-sentimentalismo partilhado, também entre Eliot e Kitaj sobressaem os valores mais notáveis do Modernismo e a complexidade alusiva dos fragmentos recolhidos da memória. Uma tal aproximação não só exemplifica a formação de uma consciência estética nova, no que diz respeito à percepção na recepção da obra, como afirma uma compreensão diferente do espaço e
do tempo. A esta exploração da quarta dimensão, acrescenta-se o significado associativo dos signos nas colagens e recortes de palavras, assim como a recorrência à arte primitiva. Randy Malamud defende a preferência de Eliot por Dante, ao analisar o poema de ponto de vista da fragmentação e dos significados ou sentidos atribuídos a cada peça ou tessera que compõe o mosaico do poema. Não que Malamud alguma vez faça qualquer referência ao paralelismo aqui
avançado, mas é inconfundível as relações de semelhança quando afirma perto do final do ensaio: “the ideal reader must come to understand, this water will not suffice” (Idem, 110). De igual modo se procurava no cubismo envolver criativamente o fruidor da obra, havendo uma espécie de feed-back na resposta deste perante a experiência estética: "But Eliot’s monologues are Cubist portraits in the mode of synthetic Cubism, and the spectator must interpret the disparate impressions. To be sure they have a narrative structure as they move from beginning to end. But they also have a spatial dimension" (Schwarz 1997: 110).
Desmaterializar e dividir para transformar, por um lado, e reordenar o mundo através de padrões imbuídos de contrastes e semelhanças, por outro lado, vêm de encontro às convicções
ideológicas do próprio Eliot, no que diz respeito ao seu ideal de uma Christian Society: “while Cézanne classicism is secular, Eliot’s often depends on traditional Christian perspective to shape his values.” (Idem, 111). Poderia ser incluído, nestes termos gerais, a estrutura de configuração cubista com a multiplicidade dos seus pontos de vista, as alusões sistemáticas à música, à natureza e à 4 paisagem urbana, assim como o ritmo das profundezas infinitas: “Pour Delaunay, il y a correspondences baudelairiennes, entre le visuel et l’auditif car les couleurs produisent des vibrations (...).les formes circulaires de Delaunay ou les rayons de lumière sont comme des auditives” (Saigal, 1999: 331-333).
Este ritmo subjacente à música alude, por sua vez, ao tempo. Em “The Waste Land” ele reside na
sequencialidade do fluxo de água. Há características do pensamento da época, nos meios literários e artísticos, que se definem igualmente pela recorrência a formas de expressão popular:

(...) the shifting of figure and ground, the switching of aspects, the display of pictorial paradox and forms of nonsense. We might call this the “wildness” of the metapicture, its resistance
to domestication, and its associations with primitivism, savagery, and animal behavior (...). Metapictures are notoriously migratory, moving from popular culture to science (...) ornaments to centrality and canonicity. (Mitchell 1995: 57)

Eliot emprega-as, nas alusões ao musichall e ao ragtime, para representar os valores que definem a verdade intrínseca da realidade, mas não o faz sem o valor depreciativo, por via de sinais irónicos, que confere à realidade a sua outra faceta. A efemeridade e superficialidade do mundo moderno são expostas no jogo dialéctico, a que Bergson atribui a conciliação de formas de ordens diversas:

(...) the complex writing known as modernism continuosly tried to impress its readers that it was something new (...). Much of it stemmed from the basically poetic technique of concentrating
meaning and emotion in an image (...). As Bergson had written in his Introduction to Metaphysics, “The image has at least this advantage, that it keeps us in the concrete (...) many diverse images, borrowed from very different orders of things, may, by the convergence of their action, direct consciousness to the precise point where there is a certain intuition to be seized (...)
(Wagner 1990: 42)

A síntese de Hulme e o mundo ordenado de Dante resolvem com mais eficiência, do que Shakespeare, o mistério da vida. No âmbito 5 deste trabalho agrego como sub-título, aquilo que ocupa a generalidade das obras desta época, e se sintetiza na relevância da realidade dinâmica de uma época que rompe com a ordem do passado.
(Des)centramentos e Contrastes Simultâneos em “The Waste Land”

A presença ou ausência da água marcam o ritmo nos registos formais das imagens. A imagem do remoinho “Entering the whirlpool” (TWL, 329) induz o leitor a formar a imagem mental de círculos concêntricos, e pela semelhança recorre-se ao momento da falsa clarividência de Madame Sosostris: “ I see crowds of people, walking round in a ring” (TWL, 56). O movimento circular de quem na alucinação parece vislumbrar possíveis oásis que logo se desfazem, toma a direcção do centro, o mesmo para onde se dirige o grito silenciado na prisão e isolamento de cada ser, demarcando o ser do mundo. Este percurso que se aparenta ao ritmo mecânico do relógio
denuncia a forma de Bradley: “My external sensation are no less private to myself that are my thoughts or feelings. In either case my experience falls within my own circle, a circle closed on the outside.”(cf. T. S. Eliot The Waste Land Ed. Nick Selby 1999: 97). Há uma secura espiritual que se exterioriza na ausência da água, ou na fealdade de Lil e que contrastam com a associação inevitável da frescura, e beleza da rapariga dos jacintos. Esta alusão formula momentos de exaltação que ocorrem em vectores verticais como vibrações das cordas de um instrumento musical: "Undergirding all the poem’s oppositions is the contrast between Dante – obviously associated with the fiercy motif – and Shakespeare, who, less obviously, aligns with water, and an intrincate strand I call water-music" (Malamud 2001: 102).
É na experiência do êxtase, por oposição à experiência dolorosa do colapso mental, que a influência da visão de Dante, no poema, evita a sua estilização – a que estaria sujeito se apenas aludisse a Shakespeare – transformando-o, apesar da supressão do homem nos interstícios de momentos que vacilam entre a fragilidade e a loucura, mas também entre o caos e a ordem mecânica que reduzem a vida a uma mão cheia de pó. Malamud atribui a Dante, e fá-lo pela preferência6 assumida de Eliot, este poder de ordenar o que se apresenta confuso: “(...) Eliot makes recourse to Dante as a repository of sanity and order for the first (but not the last) time in the poem”(Idem, 103).
A descida de Marie pela montanha ocorre de uma ordem temporal que lhe define os contornos, caso contrário seria uma imagem inconsequente e um pedaço solto, sem significado aparente que não o óbvio. Entre múltiplas ocorrências que constituem o mosaico de fragmentosalusivos, a inteireza e integridade do todo mantêm-se em cada uma destas tessere, uma técnica que reporta a Dante e à construção da Divina Comédia, mas que como teoria estética apresenta as mesmas
qualidades plásticas da pintura:

Comparision is the ideal trope for figuring “action at a distance” between different systems. When accompanied by a set of standard and acceptable differentiations between the institutions of “literature” and “visual art” (that is, differentiating figures like the “spatial” and “temporal” arts, the icinic and symbolic, even “the verbal” and “the visual”) a conceptual framework for comparative study is established (...). (Mitchell 1995: 85)

Do ritmo implícito a este tempo, de natureza musical e aquático, estabelece-se o contraste com o silêncio e com a manifestação do ser através da palavra, por oposição à ausência de água. Malamud referese à técnica dos elementos binários de Eliot, como expressão moral do poema:

There, he most succintly expresses the poem’s moral: eschew figurative dryness and seek the
fertility that water, potentially, facilitates (...) water, one of Eliot’s “obsessive images”, presents an image of disturbing ambivalence. Music is a similarly prominent leitmotif. A close analogue for poetry, music has the power to soothe the poem’s audience, to communicate in harmonic orderly tones signifying a concomitant order in the external world. (Malamud 2001: 100)

A noção de tempo como representação exterior e o conceito de espaço virtual, em “A Game of Chess”, na sobredosagem de imagens e7 reflexos, escondem outra realidade, submersa na espiral vertiginosa da aceleração, quando os nervos quebram o ânimo e a vida urge no
instante do momento. Neste espaço de alusões encerram-se, sistematicamente, todas as ilusões. A melancolia atravessa a atmosfera do poema, na sua cor violácea “The violet hour”, “The violet light”, “The violet air”, inserindo as paisagens humana, citadina e natural em espaços de irrealidade e sonho, de crueldade e pesadelo, de possibilidades desperdiçadas, de corpos violentados, de sonoridades e imagens sugestivas:

Properly played and heard, music opposes (or subdues) the dissonance of city noises, pseudoprophecy and vitriolic chatter. But just as the poem offers myriad sources of polluted, degraded water, it also depicts mostly delusory or ineffective musical passages (e.g. gramophone,
bawdy ballad, birdsong of torture). (Idem, 100-101)

Nesta justaposição de planos, a história é absorvida pelas coordenadas do tempo e a fuga à realidade atinge-se pela visão em profundidade:
And other withered stumps of time
Were told upon the walls; starring forms
Leaned out, leaning, lushing the room enclosed
(TWL, 104-07)

Há nos movimentos sugeridos forças conservadoras, centrípetas, ou outras, irradiantes de natureza centrífuga, cujas propriedades emprestam aos fenómenos qualidades antagónicas. Os pedaços recolhidos na civilização são reordenados na visão dantesca de um mundo, acordando para o horror. Deste lado das trevas o homem caminha marcado pelo pecado original, cuja força centrífuga o repele para os lugares mórbidos ou marginais da metrópole, simbolizados pelas
margens do Tamisa. A mesma rotação retoma outro sentido, pela força centrípeta que caracteriza a síntese dos elementos fragmentados. Esta força é inconfundivelmente de teor cubista, que congrega e adensa toda a informação no plano das formas, atingindo a unidade pela
8 diversidade de sentidos. Esta unidade está ameaçada, como está o rio poluído dos dejectos civilizacionais.

* * *

Madame Sosostris, protótipo da falsa feiticeira, manipula os sentimentos dos outros explorando, através da simulação de rituais falsamente mágicos, o respeito pelo tabu: “Fear death by water.”
(TWL, 56). Esta proibição velada revela a discordância entre espírito e matéria. Pelos trocadilhos formam-se imagens de natureza aquática e se há quem veja em Belladona e Lady of the Rocks a alusão à “Gioconda” de Leonardo, não será demais acrescentar que entre Belladonna e Madonna vai a distância que separa “Gioconda” de “A Virgem dos Rochedos”, cuja réplica atribuída à escola de Leonardo da Vinci está representada na Galeria Nacional de Londres. O seu enigma
está envolto na mesma perspectiva atmosférica aquática. Coincidência ou não, já “Gioconda” tinha despertado a atenção de Yeats: For, in Yeat’s view, the first modern poem was (...) a prose passage about a femme fatale – the famous description of “La Gioconda” from Walter Pater’s Studies in the History of the Renaissance (1873), which Yeats excerpted (...) under the title “Mona Lisa” (...)” (Gilbert 1989: 3-4).
Mas o certo é que a luz beatífica de Dante é a mesma que percorre “A Virgem dos Rochedos”. Se é a Natureza que imita a Arte, como se infere de Hegel, aquela, ao procurar na experiência da
natureza o sentido elevado da sua essência, encontra apenas devastação e caos. A cegueira de Madame Sosostris, relativamente à carta em branco, é a imagem que reflecte a colectividade cega que caminha na escuridão, se considerarmos aquilo que Malamud diz sobre a ressonância do Inferno de Dante em The Waste Land, “Eliot depends on Dante to provide the first horrendously large-scale-deep-depiction of his Unreal City’s festering terror.”(Malamud 2001: 103). Há uma
lacuna civilizacional que Eliot explora a partir do final da ordem medieval e da transição abrupta para uma outra ordem que impossibilita o todo universal, fragmentado pelo avolumar do
conhecimento e a ausência crescente da sabedoria dos antigos. A obra 9 é contaminada pela secura de um século, que inicia a sua vida sem sentimentos religiosos. O ritmo subjacente da obra encontra-se na fluidez das semelhanças e contrastes que ligam esses fragmentos no espaço labiríntico constituído no espaço de vácuo, por espaços de consumação e deriva. A coerência estrutural torna exequível a ordem do poema, embora a cacofonia do mundo moderno possa parecer invibializar qualquer possibilidade nesse sentido. Randy Malamud refere a propósito a relevância de Dante em “The Burial of the Dead”,e a de Shakespeare em “A Game of Chess”:

O O O O that Shakespeherian Rag —
It’s so elegant
So inteligent
(TWL, 128-130)

Perturbante pela sua inserção na descabida ironia entre dois momentos existenciais de desconstrução psicológica e moral, a complexidade do poema e a popularidade da canção adensam o sentido deslocado das acções, no plano das emoções e do pensamento. Tudo flui nesse ritmo, o que é racional e o que é irracional, o que é real e o que é irreal. A natureza absoluta de Dante sobrepõe-se à caótica associação de evocações Shakespearianas. Do primeiro sobressaem as formas circulares e espiraladas, simbolizadas pelo fogo, do segundo nasce a musicalidade da água e o tempo a ela associado, de que Malamud afirma ser a causa dos momentos de inconsequência e (in)sinceridade, concentrados na relação entre Cleópatra e António.
As formas amorfas que se constituem no tecto do quarto enclausurado, onde a rainha sentada no trono se rodeia de perfumes sintéticos e vapores dos odores libertados, são proporcionais às relações ocasionais entre um representante da burguesia triunfante e uma empregada de escritório que vive num pequeno apartamento desprovido de ordem. A evocação ao estado mental confuso de Ofélia trilha o mesmo caminho da civilização moderna. Há uma semelhança, por oposição à cegueira da multidão, com o caos da espontaneidade de Ofélia. A entronização e a deificação do jogo pelo jogo ressaltam do mito deCleópatra:10
The opening evocation of Cleopatra typifies the hazards Eliot embeds in his Shakespearean source. Blinded by his adoration of the Egyptian Queen, Antony squandered his power in the Roman triumvirate; sacrificed his army in poorly planned battles; and saw the dissolution of his vast empire as he wasted his own life, driven to suicide by Cleopatra’s manipulative passion.(Idem, 105)

O ambiente inebriante do quarto de Cleópatra mascara a artificialidade e a decadência social. Segundo Malamud, este boudoir substitui o esplendor Shakespeariano de um passado, ao tomar o lugar do Nilo. Daqui decorre a inconciliação da água e do fogo, ambos elementos ambivalentes de purificação e destruição que existem, respectivamente, no Paraíso e no Inferno. Ao estabelecer a associação de Cleópatra à água, preferindo no entanto rodeá-la de detalhes preciosamente ricos e sensuais, a envolvência retira à forma a sua essência, focalizando a falsidade estética do ornamento:

Casting Shakespeare and his characters as scapegoats, Eliot resists the supposition that mortal music can master the element of water. Late in the poem, the water-dripping song pleads for
the sound of water only (353). Finally emerging as a recognized and viable salvation force, water can create its own music. (Idem, 106)

A fraqueza humana associada à água deriva da mesma suposição que baseia a representação ilusória de realidade, suposição esta que tende a modelá-la e submetê-la aos artifícios da vaidade, vanitas e beleza são noções que já não correspondem à verdade do real:

Sweet Thames, run softly, till I end my song.
The river bears no empty bottles, sandwich papers,
Silk handkerchiefs, cardboard boxes, cigarettes ends
Or other testimony of summer nights. The nymphes are
departed.
And their friends, the loitering heirs of City directors;
Departed, have left no addresses.
By the waters of Leman I sat down and wept...
(T W L, 176-183)

11
Espera-se que a água se submeta a conceitos estéticos ultrapassados, mas a realidade é outra e a noção de fealdade, ou o não-poético intratável de Eliot, são representados por esta decadência que começa na boca desdentada de Lil e termina num lugar de indefinição:

Death mountain mouth of carious teeth cannot spit
Here one can neither stand nor lie nor sit
(T W L, 339-340)

Há assim uma contaminação falaciosa da natureza, pela acção e vivência quotidianas, de que resulta a concentração das emoções e que Ofélia emoldura nas suas frases absurdas indicadoras de loucura. Levada pela corrente e cercada pelos ornamentos florais, por ela
feitos, canta trechos incoerentes a caminho da morte: "Driven to madness (and remember the importance Eliot places on a sane attitude towards the mistery of life) she is on her way to drawn
herself: 'Good night, ladies, good night, sweet ladies, good night, good night'”(Idem, 107).
Randy Malamud acrescenta que Ofélia, tal como Cleópatra, é apresentada por Eliot no limiar de um limbo, pela inconsequência dos seus actos, que as impedem de qualquer alcance transcendental. O efeito catártico de Dante e as energias desperdiçadas de Shakespeare formam visões complementares que poderão definir, pela afirmação do primeiro, o mistério da vida. Da cegueira de poder de Cleópatra à cegueira de Ferdinand de Nápoles, Eliot dirige a orquestração de uma musicalidade, que ora é natural e poderosa, ora é artificial e frágil. Pela sua condição privilegiada, como mediadora entre o homem e o divino, a natureza ao ser minimizada continua a ser a receptora das aspirações e frustrações humanas. Enquanto que, perante a visão de um mundo empírico e materialista, o homem se divide e mergulha na irrealidade, pelo desespero e distanciação crescente no confronto com as forças da natureza: "Music leads Ferdinand to the play’s island, where his grief dissipates as he listens. He forgets the reality of the sea’s force as he succumbes to the conceit that the music controls the waters, 12 “allaying both their fury and my passion” (Idem,109).
Há uma perspectiva apocalíptica na ausência de percepção, do mesmo modo que se multiplicam os pontos de fuga. Na estrutura de configuração cubista, Eliot regista na falácia o erro do olhar
superficial:
Eliot’s fragmentation, disrupted narrative, alternation of background and foreground, and, finally, disparate picture planes resolved into one plane owe much to the Cubist collage (...) The
visual vignettes of The Waste Land intersperse figure and ground on the same plane in a collage
technique; (Schwarz 1997: 110)

A falta de identidade numa forma desprovida do seu conteúdo é uma abstracção, opondo-se à concreteza da forma de Dante, animada pela vivacidade das emoções e a clareza dos espaços topografadas pela luz. A procura de paz e serenidade, de uma ordem sagrada, é a procura
suscitada pelo sentimento religioso, o mesmo que está interdito às mentes confusas pelo seu drama individual: perde-se o sentido do absoluto, perde-se o momento do encontro. E se a canção de Ariel, ‘“Those are pearls that were his eyes”’ (I. ii. 399), que Malamud cita de “The Tempest”, refere a dissimulação da realidade, Ferdinand acreditando que o pai afinal não está morto “(...) but has, rather, become a work of art”, coloca o paradigma da morte no plano das
ilusões, já que na verdade o rei não está morto. A pretensão de os seus olhos serem pérolas, obscurece qualquer clareza da realidade. O que resta de toda esta beleza superficial é no fundo a questão que Malamud coloca, para evidenciar a irresolução dos problemas pela via da abstracção, em detrimento das formas concretas. E se a inconciliação da água e do fogo era evidente nas primeiras secções, dado que Cleópatra incompatibiliza esta união, ela é realizada através do Trovão:
Eliot´s preferred water-song finally plays in “What the Thunder said”, where it asserts, as the
journey concludes, the value of simple, honest water, in simple, descriptive terms – stripped of Shakespearean contrivance or clever artificiality:13 “If there were water we should stop and drink/Amongst the rock one cannot stop or think” (335-6). The water song’s final refrain – bringing the reader very close to the voice of guidance and control – expresses, as Eliot demands, the sound of water only: “Drip drop drip drop drop drop drop drop” (358). (Malamud 2001: 111)

O som da água associado às suas fontes, as nuvens e o rio, protagonizam em DA forma a síntese de uma sonoridade específica que recua aos primórdios da própria arte, “‘Poetry begins, I dare say, with a savage beating of a drum in a jungle’ (UPUC, 155)”(Idem, 113).

Conclusão

Esta nova formulação do olhar traz consigo a dinâmica dos contrastes e dissonâncias, sendo receptadas pelo fruidor como uma unidade perceptiva. O movimento gerado pela interacção, entre as forças interna e externa que animam as leis da natureza, encontra ressonâncias no desejo do criador moderno, ao transformar a sua arte em objecto para o qual convergem os estados de alma e os vários aspectos da realidade. Há uma realidade obscurecida pela ilusão dos
sentidos e é no fundo aquilo a que Randy Malamud se refere, ao evidenciar no poema a bifurcação da mesma. Contrapondo a irresolução dos problemas existenciais, pela via da abstracção, às formas naturais e concretas, Eliot assinala a questão central da condição humana, a morte. Ao fazê-lo, utilizando contrastes entre o natural e o artificial, a ilusão torna-se a razão fundamental do afastamento do ser humano de si mesmo, tendo perdido a capacidade de transcendência pela disfunção entre matéria e espírito: “The demon of the Absolute is the embodiment of the natural human tendency to shrink before a too harsh dualism of flesh and spirit”(Schwarz 1999: 134). Todos os sentidos suplementam-se na acumulação de cores, formas, odores e sons. Esta ideia já definida por Bergson em 1907 aquando da publicação de L’Évolution Créatrice, não surge isolada apenas na teoria; a sensação de descontinuidade, ou a condensação nas abreviações da linguagem, são o resultado de uma evolução tecnológica
que irrompe abruptamente na civilização ocidental.14
Malamud coloca nos pratos da balança contrastes que conduzem no final do poema à superação da ordem e controlo sobre o caos, sublinhando ser este domínio sobre a água o culminar de um desejo só conseguido pela relevância da voz de Dante “‘Poi s’ascose nel foco che gli affina’ (428; Purgatorio 26. 148)” e que dissolve o rumor vago da voz de Shakespeare. Chega-se à fórmula do fogo apaziguador, à sua natureza purificatória que, simbolicamente, é representada pelas chamas do Purgatório de Dante. Subentende-se nesta natureza do fogo o desejo de mudança interior, desejo que nasce do centro do ser. Se pelo facto da existência dos contrastes já apontados, a
descontinuidade e o desiquilíbrio reflectem a realidade da vida moderna, a importância do fogo em “The Waste Land” representa a sua preocupação e perspectiva perante o distanciamento do ser humano, relativamente aos valores morais e religiosos, mas também à sua alienação no seio da vida mecanizada e artificial.
O fogo, símbolo de castigo, é o mesmo que purifica e inspira à palavra, de modo que cada elemento da natureza, ao apresentar dentro de si sinais contrários, denuncia a assimetria presente na artificialidade da vida, ao justapor elementos contrastantes como fogo/água. Ela está presente na vida dinâmica das cidades e é apresentada através de combinações e justaposições, como assimetria/simetria, dinâmico/estático, forma/informe: “(...) Eliot uses shifting forms, discontinuities and assimetry. His vignettes correspond to the distinct perception and operation of Cézanne’s strokes. Cézanne, like Eliot, launched a formalist revolution.”(Schwarz 1997: 108). O ponto culminante da inconciliação do fogo e da água define-se no momento de transição entre a terceira e a quarta secções, na passagem de “Burning” para “Death by Water”,
ouvindo-se os murmúrios distantes da água:
A current under sea
Picked his bones in whispers.
(T W L, 315-6)

Imagem apocalíptica, ela representa, pelo sentido da imersão, a simultaneidade de acessos e saídas possíveis como resposta ao15 mistério e condição da vida. Deixo a fechar esta conclusão a imagem pictórica do fogo, imagem formada no espírito através da cor a ela associada. Até este momento, falando de “The Waste Land”, utilizei um modo de ver, ou um modo de compreender, por que: “In the characteristic Modernist way, it is a poem about looking (...) choose
to, as when we are looking at paintings, start any place we please.” (Idem, 102). Da mesma forma poderia, em vez do fogo, ter sugerido a ausência de cor na água. Sem cor própria, a água revela a sua aptidão ou qualidade de reflexão do longe, de uma distância ou talvez de uma
abstracção.16

Obras citadas:

Eliot, T. S. Selected Poems. London: faber and faber [1961].
Gilbert, Sandra M./Susan Gubar (1989). No Man’s Land. The Place of
the Woman Writer in the Twentieth Century (vol. 2). New Haven and
London: Yale University Press.
Livingstone, Marco (1999). Kitaj. London: Phaidon Press Limited.
Malamud, Randy (2001). “Shakespeare/Dante and water/music in The
Waste Land” in T. S. Eliot and Our Turning World. Ed. Jewel Spears
Brooker London: University of London in association with Institute of
United States Studies.
Mitchell, W. J. T. (1995). Picture Theory. Chicago & London: The
University of Chicago Press.
Saigal, Monique. “Mouvements Circulaires et Luminosité chez G.
Appolinaire, R. Delaunay et D. Milhaud” in Rouget, François/John
Stout (1999). Poétiques de l’objet. L’objet dans la poésie française
du Moyen Âge au XXe siècle. Paris: Honoré Champion.
Schuchard, Ronald (1999). Eliot’s Dark Angel. Intersections of Life
and Art. Oxford: Oxford University Press.
Schwarz, Daniel R. (1997). Reconfiguring Modernism: Explorations in
the Relationship between Modern Art and Modern Literature. New York:
St. Martin Press.
Wagner-Martin, Linda (1990). The Modern American Novel 1914-1915. A
Critical History. Boston: University of North Caroline.
Bibliografia:
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University Press
Chinitz, David E. (2003). T. S. Eliot And The Culture Divide. Chicago
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the Relationship between Modern Art and Modern Literature. New York:
St. Martin Press.
Wagner-Martin, Linda (1990). The Modern American Novel 1914-1915. A
Critical History. Boston: University of North Caroline.
Índice:

Introdução . . . . . . . . . . 1
(Des)centramentos e Contrastes Simultâneos em “The Waste Land” . . 5
Conclusão . . . . . . . . . .14

Acerca de mim